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Rute Figueiredo (n. 1970) é investigadora do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana e formou-se na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa em 1994. Arquitectura e Discurso Crítico em Portugal (1893-1918) foi publicado em 2007, tendo recebido o Prémio José Figueiredo, pela Academia Nacional de Belas Artes, em 2008. Corresponde à pesquisa científica realizada no âmbito da dissertação de Mestrado que defendeu na Universidade Nova de Lisboa (UNL) em 2003 tendo tido no júri uma figura incontornável da crítica em Portugal – Pedro Vieira de Almeida. Este livro é o segundo título de uma colecção dedicada à edição de trabalhos académicos da Unidade de Investigação Estudos de Arte Contemporânea dirigida precisamente pela sua antiga orientadora, Margarida Acciaiuoli de Brito. Uma descrição muito sumária dos objectivos da colecção está exposta na abertura do prefácio assinado por esta docente (p. 13). A colecção foi entretanto crescendo, reunindo hoje cerca de uma dezena de títulos.

Com este trabalho, Rute Figueiredo revela-se uma voz fundamental no domínio da produção teórico/crítica dedicada à arquitectura em Portugal, quer pelo tema quer pela cronologia. O “objecto” aqui trabalhado situa-se temporalmente entre 1893, ano que assinala o início da publicação de A Construcção, “primeira revista da especialidade [...], exclusivamente vinculada ao âmbito da construção civil e arquitectura, que marcou em Portugal o início de uma reflexão crítica sobre os problemas suscitados por uma nova condição urbana na sociedade moderna” (“Introdução”, p. 17); e 1918, data do lançamento de A nossa casa: apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples, de Raúl Lino. Trata-se de um período que tem vindo progressivamente a merecer a atenção dos investigadores de arquitectura depois de ter sido quase eclipsado pelos estudos dedicados ao Movimento Moderno, desenvolvidos nos anos de 1980 e 1990. Neste domínio, o livro de Rute Figueiredo pode ser classificado como pioneiro tendo-se transformado em leitura obrigatória para quem visita este momento da cultura arquitectónica portuguesa.

O volume organiza-se em duas leituras “complementares: uma [... a] que chamámos longitudinal; e [outra] que nomeámos de transversal” (“Introdução”, p. 23). Estas duas “partes” funcionam de modo independente, denunciando o tempo longo, próprio destas provas académicas (antes, portanto, da formação em arquitectura se ter transformado num mestrado integrado), e reflectindo as diferentes fases da investigação que a revisão final não homogeneizou totalmente. Se há um tom mais “descritivo” na primeira fase, traduzindo talvez o processo de aproximação ao tema, na segunda detecta-se um domínio maior que permite considerações mais interpretativas. No entanto, o tom geral do texto é de uma grande fidelidade aos documentos coevos e aos factos históricos, testemunhando um conhecimento exaustivo das fontes e uma metodologia irrepreensível.

Como centro do debate – imediatamente esclarecido no título – surge a produção de crítica no campo disciplinar da arquitectura, temática lateral à maioria das abordagens historiográficas que se têm dedicado ao final do século XIX português e aos seus desdobramentos arquitectónicos em Novecentos. Vale a pena tomarmos a tradição inaugurada por José-Augusto França (n. 1922) – aliás, referência tutelar da pós-graduação da UNL para o período contemporâneo – com o segundo tomo sobre A arte em Portugal no século xix (1ª ed. 1967; 2ª ed. 1981; 3ª ed. 1990) que cobre o intervalo mediado entre 1880 e 1910, coincidindo com o principal período destacado por Rute Figueiredo. Nela detectamos naturalmente a valoração dos estudos em História da Arte através de figuras como Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), “o [seu] verdadeiro fundador [...] em Portugal”, que se confundiu durante algum tempo com uma produção próxima do exercício da crítica. Rute Figueiredo aprofunda um caminho que se liga mais directamente à arquitectura, clarificando de forma gradual o lugar alcançado por cada disciplina neste debate. Principalmente prova a existência de actividade crítica anterior à consolidação da linguagem moderna na arquitectura portuguesa, facto que acrescenta conhecimento à (que poderíamos chamar) “historiografia clássica” que se tem debruçado sobre o tema da crítica em Portugal.

Ao longo da primeira parte é extraordinário o esforço de levantamento de toda a produção escrita relacionada com as artes da construção – arquitectura, engenharia, tecnologias construtivas. Essa investigação partiu de fontes “literárias” desembocando nos ensaios higienistas (ou higiológicos); Rute Figueiredo começa por interpelar o intelectual português de Oitocentos e acaba a reproduzir os conselhos vindos da Medicina, área do conhecimento que, como se sabe, detém um importante papel na reorganização da cidade do século XIX. Percorre-se assim a evolução das artes oitocentistas que assentam alicerces num universo culturalista e gradualmente cruzam esse mundo com o conhecimento científico ou positivista. Do historicismo ao progresso ou, tudo em simultâneo, tomando a cidade como palco privilegiado das transformações do final de século; a escrita de Rute Figueiredo é aqui bastante enxuta, expondo os debates da época, colocando os seus “actores” em discurso directo e muitas vezes mesmo em “diálogo”. Significativamente, quase todas as classes sociais instruídas, pouco numerosas na sociedade portuguesa da década de 1890, possuem representantes nesse debate culturalista do tempo, ainda que aos homens de letras pertença o maior protagonismo. Eça de Queiroz era escritor e diplomata; escritores ainda eram Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida (também formado em Medicina) ou Antero. Mas na Construcção aqui já citada, surgem como fundadores e redactores vários nomes de construtores civis (Cap. I, p. 33-35) o que reflecte um novo posicionamento. Esta circunstância funciona como momento-chave para a mudança que este trabalho sinaliza.

Rute Figueiredo vai-nos assim colocando nos diversos cenários – que se tornaria exaustivo aqui enumerar – mas que vão abrindo o panorama comummente aceite. Esta primeira parte fornece os argumentos que conduzem à veia mais interpretativa da seguinte, que arranca precisamente com um capítulo sobre a autonomização da crítica de arquitectura (p. 189 e ss.). Escreve a autora: “No início de Novecentos [...] chegava-se [...] à determinação de um espaço intermédio, no qual a crítica de arquitectura chegou a exibir uma certa ‘funcionalidade’, impondo uma lógica e unidade próprias” (Cap. I, p. 222). O momento é todavia demasiado complexo debatendo-se com a ausência de uma “metodologia” clara. As questões mantêm a sua actualidade: “Pois como havia o crítico de julgar? – perguntava-se no início de Novecentos” (p. 224). Ainda que se revelando equívoca, a campanha pela casa portuguesa haveria de dar uma resposta generalizada.

Percebe-se, nesta segunda parte, que Rute Figueiredo está mais à vontade para conduzir a narrativa no sentido de encontrar a “sua” tese, tratando 1890 como a década embrio-
nária da “moderna” crítica em Portugal e, 1900, como o ano decisivo em que esta começa a emancipar-se. A identificação deste fenómeno permite situar a génese de uma actividade crítica, com ambição disciplinar, no início do século xx. Deste exercício beneficia a prática do profissional de Novecentos – como aliás é recomendável. Diz-nos então a autora, já nas conclusões: “O ‘novo arquitecto’ compreendeu que sem o investimento na crítica dificilmente teria adquirido auto-suficiência disciplinar e reconhecimento público” (p. 370). Mas, e apesar do tom progressista com que abre a sua narrativa, a história que Rute Figueiredo aqui nos conta é mais a de um fracasso do que a de um sucesso. Para o perceber melhor há que ler o livro.|

 


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